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Nos idos de 1970/71, ao iniciar minhas primeiras letras jurídicas, ouvia de um grande e saudoso Mestre, José Ignácio Botelho de Mesquita, na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, que o governo da ditadura militar preparava um código de processo segundo seus sabores autoritários. Confesso que tinha, assim como os colegas, graves dificuldades intelectuais para descobrir esse propósito opressivo num "simples" código de processo civil.
A maioria do povo e dos juristas não vislumbrava o que percebia aquele insigne professor e doutrinador. Se perguntássemos se a conquista da liberdade era importante por meio de uma Constituição querida e aprovada pelo povo, não teríamos dúvidas. A Constituição, como leis das leis, é que importava. O restante eram adminículos.
A experiência incomparável de mais de 40 anos de exercício contínuo da advocacia vale mais que as elucubrações das melhores academias, em todo o mundo. Basta refletir, o advogado que se entrega de corpo e alma às suas causas, sobre o fator determinante de sua derrota ou de sua vitória. Entre as derrotas, incluo as respostas jurisdicionais tardias, que, infelizmente, compõem o usual da prestação pelo Estado da jurisdição, em ordem a admitir-se a veracidade de conhecido pronunciamento de Rui Barbosa e do grande Carnelutti, que, melancolicamente, ao fim de sua majestosa e, pelo visto, inglória vida, disse que todo processo está fadado ao fracasso.
Essas conclusões tiradas da vida e da academia permitiram-se desvendar o segredo das palavras do professor Mesquita. Para que todos os leitores, não apenas os iniciados, entendam, é necessário dizer que o direito é composto das normas de direito material - o direito à propriedade, observada sua finalidade social, o direito à vida, o direito à intimidade, o direito ao cumprimento, pelo outro contratante, do pactuado, e assim por diante. Os mais importantes direitos do indivíduo, que se convencionou chamar de direitos humanos, estão na Constituição Federal; outros estão previstos no Código Civil, Código Penal, Código Comercial, e inúmera legislação esparsa contida no incrível cipoal de leis que preenchem nosso chamado ordenamento jurídico positivo.
O problema é que "ter um direito", como se diz amiúde, é algo meramente ideal. Não é realidade. E, se não é real, não é racional, assim como, se não é racional, não é real, em paráfrase de Hegel. Portanto, a regra que nos dá um direito deve ser executada, deve ser um fato. Poderíamos dizer: valemo-nos do direito que nos reconheceram as normas jurídicas.
Entretanto, no estágio atual da cultura jurídica, não podemos fazer prevalecer nossos direitos pelas próprias mãos, salvo em casos raríssimos, fundados na legítima defesa imediata e segundo moderação. Devemos pedir a intervenção do Estado por meio do Judiciário.
Nesse ponto crucial entra a importância do processo e dos códigos de processo, entre eles o mais importante, a ponto de balizar os demais em determinados aspectos - o Código de Processo Civil. Consequentemente, sem um bom Código de Processo Civil os direitos são meramente teóricos e a democracia, como afirmou Carlile, uma ditadura com urnas. Começamos a entender a visão crítica do professor Botelho de Mesquita.
Os direitos democráticos arduamente conquistados ficaram na platitude teórica, por obra de um código que valorizou a autoridade, o juiz, a discricionariedade pintada de vinculação à lei, o descompromisso de juízes e Tribunais com a sorte das partes, em geral chamadas de titulares de direitos subjetivos, mas, na prática, tratadas como coisas, objetos, como recentemente se manifestou em artigo de imprensa o ex-Presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, Jose Renato Nalini. A uma boa parte dos juízes pouco importava, ou importa, a Justiça, conceito de direito que abalou a humanidade deste Aristóteles e a Ética a seu filho Nicômano. Ser juiz é aplicar a lei, ainda que sofisticadamente, como é do gosto de eruditos hermeneutas, a despeito de não se fazer justiça.
O Código ditatorial, ora revogado, contribuía para essa opressão judiciária. Certo é que houve várias tentativas de reforma e remendos, tíbias como os títulos indicam. A criação do Conselho Nacional de Justiça foi um grande avanço, diante do qual se apressaram os Ministros do Supremo Tribunal Federal a dizer que sobre eles não havia jurisdição superior: não se supunham deuses, tinham certeza disso.
O novo Código de Processo Civil é plenamente compatível com um regime democrático. Reconheceu poderes antes inimagináveis aos advogados e, por via de consequência, às partes. Em sum gama de preceitos, limitar-nos-emos a dois, porquanto o temo urge e a matéria é vasta. Primeiro, os deveres do juiz ao proferir uma sentença convincentemente fundamentada e, se descumpridos, suscetíveis de embargos de declaração (instrumento pelo qual a parte pede esclarecimentos). O segundo preceito democrático consiste na criação de ordem cronológica à tramitação dos processos. Ninguém é mais do que ninguém, é dizer, todos são iguais perante a lei; o juiz não pode julgar um processo a ele submetido antes de outro, posterior. O art. 12 do novo Código preocupou-se tanto com essa matéria que a disciplina minudentemente: não só rege as preferências, sociologicamente justificadas, como também as preferências dentre as preferências, por igual motivação.
O esquadrinhador do novo Código de Processo Civil, que somente não é exemplo em sua sistematização formal, o que é um pecado venial, verá que ganhou o advogado e o cidadão; os juízes, a partir do próprio Supremo Tribunal Federal, tiveram de entender que o poder máximo é o poder do povo. Numa democracia verdadeira não há lugar para células de autoritarismo, por mais que sejam venerados seus membros vitalícios.
Depois de tantos anos, soubemos ver a profundeza de pensamento daquele mestre, entre, naturalmente, outros, que alavancam as democracias em códigos processuais democráticos.
Amadeu Roberto Garrido de Paula, advogado e poeta. Autor do livro Universo Invisível e membro da Academia Latino-Americana de Ciências Humanas.
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